REFLEXÕES SOBRE A PEDAGOGIA DA AUTONOMIA
DE PAULO FREIRE, por
José Pessôa do Rêgo Lobo
No livro “Pedagogia da
Autonomia – Saberes Necessários à Prática Educativa” de Paulo Freire, a partir
das reflexões que pude tirar do estudo mais detido segundo capítulo, além de
outras que sobrevoaram a extensa, profunda e imprescindível obra o autor, observei
que a todo momento o mesmo reafirma a necessidade de uma práxis dialética
coerente na qual a vida e a obra de ensinar são, por assim dizer,
intrinsecamente enlaçadas.
É, interessante destacar a
forma como seus ensinamentos são apresentados, com uma expertise ímpar, Freire
nos brinda com seu método absolutamente singular de facilitador de saberes e
nos proporciona uma construção argumentativa, sempre exemplificado a partir de elementos
do cotidiano, valendo-se de uma linguagem simples, compreensível a qualquer indivíduo
razoavelmente alfabetizado, de modo que desde a escolha das palavras nosso
saudoso patrono nos semeia com testemunhos do que vem a ser suas práticas e
concepção de mundo, e, mais ainda, de que forma devemos conceber o conhecimento
científico.
Desta forma, pode-se dizer que
pautado sempre pelas demandas reais de sujeitos concretos historicamente
determinados, constrói um conhecimento significativo a partir de temas
geradores, por isso mesmo, ao implementar sua metodologia de ensino e as bases
epistemológicas que informam seu pensar-agir-pensar - num ciclo infindo que em
cada volta pretende agregar novos elos - sujeitos reais invadidos muitas vezes
de modo perverso pela dureza de um sistema político meticulosa e
metabolicamente projetado para reproduzir alienação, esquecimento, domínio e
destruição, a partir de poucos para toda da vida planetária e quase a
totalidade dos humanos, em particular, ele propõem a necessidade de mudanças
radicais em todos os níveis do existir e, neste sentido, busca nos favorecer com
ferramentas que, enquanto protagonistas, estes (todos e todas nós), possamos transformar
de forma qualitativamente superior nossas realidades, isto é, que vivamos em um
mundo cercado de bonitezas para todos os lados, e não mais de misérias.
Sendo assim, Paulo Freire
parte, a meu ver, de algumas premissas incontornáveis em seu pensamento, as
quais penso compor entre si uma dialética viva, sobretudo em três eixos centrais
dos quais todo o constructo se lança:
a) a
compreensão de que os indivíduos, em suas multiplicidades únicas,
idiossincrasias, histórias de vida e modo de (re)agir ao mundo não poderão ser
jamais, de modo absoluto, marionetes de uma realidade imposta desde fora, por
forças estruturantes ou atitudes alheias às suas necessidades, pois serão sempre
(mesmo que muitas vezes de forma fragmentada e alienada), sujeitos,
protagonistas de sua própria realidade. Neste sentido, professores, estudantes,
pesquisadores, merendeiros, vigilantes, pais/mães de alunos, comunidade de
entorno, enfim, todos e todas as pessoas que direta, indiretamente ou até
avessamente aos processos de ensino-aprendizagem, compõe o grande teatro de
eventos da História da Sociedade que é construída diuturnamente;
b) A
realidade sócio-histórica e suas muitas facetas, tais como as econômicas,
psicológicas, ambientais e educacionais são parte de um processo mais geral de
um modo de produção denominado Capitalismo, apresentando-se como um conjunto
sistêmico de relações econômicas e sociais que atravessam toda vida em
sociedade e todos os aspectos da realidade objetiva e subjetiva dos indivíduos,
nesse sentido, como constructo humano, histórica e socialmente determinável,
pode e deve ser entendido como algo mutável, finito, e não auto existente,
atemporal ou pior ainda, dado por Deus para que de joelhos, em culpa e
aterrorizados cumpramos passivamente.
c) Uma
proposta político-pedagógica pautada por uma epistemologia de novo tipo, cujas
raízes, tais quais às de uma velha seringueira, estão profundamente fincadas no
solo fértil das experiências que subjazem nossas existências inacabadas,
contraditórias e permeáveis. Nesse contexto, as escolhas ontológicas e
gnosiológicas informam o professor da necessidade observar atentamente seus
próprios mecanismos de atuação (desde os psicológicos aos pragmáticos), embasando-se
em uma linguagem que derruba muros, mesmo erguendo trincheiras, com um
vocabulário que estreita margens, que são pontes, posto que estão sempre
preenchidas de signos e significados, não só aqueles que se deseja implementar,
compartilhar, favorecer, mas também, atento e vigilante aos sentidos que cada
um carrega consigo.
Dessas três premissas se pode
depreender que o papel dos professores conscientes é tomar as rédeas do
processo de ensino-pesquisa-aprendizagem a partir de seu lugar na sociedade,
seu lugar de luta de classes, no seu lugar geográfico, no seu locus psicossocial,
e, partindo desses “lugares”, compreendendo as peculiaridades destes cenários,
buscar apreender pela experimentação, pela vivência no real, mas também pela
pesquisa e pela leitura, dar-se a conhecer aqueles para os quais sua dedicação (a
do professor) está ou deveria estar centrada, diuturnamente, isto é, os estudantes,
os aprendentes.
Desse modo, saber quem são,
como vivem, como falam, se têm fome, se sofrem abusos morais, psicológicos ou
sexuais, se têm um lápis, se moram perto ou muito distante da escola, enfim, ou
seja, conhecê-los e (re)conhecer-se a si mesmo, pelos mesmos mecanismos, caminhar
com a implementação de seu
ensino-pesquisa-aprendizagem-ensino-pesquisa-aprendizagem - dialógica e
dialeticamente criadores de realidades.
Sem essas bases não se poderia
erguer nenhum patamar de conhecimento que sustentasse a possibilidade de transformação
da realidade e, para Paulo Freire, é impensável que um professor, ou quem quer
que seja, se disponha a operar seu labor sem levar em conta a necessidade
urgente de transformação do establishment,
do atual estado de miserabilidade e destruição da vida em escalas crescentes
rumo à barbárie, e mais, o dever da esperança revolucionária que age de forma
drástica, permanentemente, propondo mudanças desde o nível subjetivo individual
às políticas públicas empregadas pelo Estado, e no meio de tudo a educação como
caminho, como ferramenta para caminhada e destino final.
Ao tomar posse desses compromissos
o professor deve ter em mente que “ensinar não é transferir conhecimento, mas
criar a possibilidade para a sua própria produção ou a sua construção” e, assim
procedendo ele se põe a “pensar certo”, reconhecendo nossas limitações enquanto
pessoas em construção com saberes também inacabados e essa “consciência do
inacabado” presume uma decisão de “assumir o direito e o dever de optar, de
decidir, de lutar, de fazer política” onde o pensar e o fazer não estão
dissociados, no qual esperar para que o professor esteja “pronto, inteiramente
preparado” para só então começar a lecionar seria impensável e, em certa medida
expressão de um idealismo estéril e até um ato de absoluta falta de empatia,
sobretudo com as novas gerações imersas desde o nascimento em um mundo
distópico, fascistizado e antinatural.
Compreender-se enquanto
protagonista “É a posição de quem luta para não ser apenas objeto, mas
sujeito também da História”. E sentir-se inacabado, inconcluso é permanecer nos
processos sociais de busca. Pois “É na inconclusão do ser, que se sabe com o
tal, que se funda a educação com o processo permanente”. E dessa forma ao
ensinar com respeito à autonomia do ser, e respeitando-a, o professor necessita
ser vigilante, não como ato persecutório contra os demais, senão enquanto
coletivo ético, notar-se a si mesmo antes que tudo. E ainda, é na “vigilância
do meu bom senso”, diz Paulo Freire, que podemos lecionar com muita humildade e
tolerância, no intuito de alcançamos “conhecer as diferentes dimensões que
caracterizam a essência da prática, o que me pode tornar mais seguro no meu
próprio desempenho”.
A convicção de mudança, de que
a mudança de postura de si mesmo, se seu modo de perceber e construir o mundo é
que passamos a compreender, mais que compreender, ter a “convicção de que a
mudança é possível”, e é urgente.
Nessa caminhada, sempre
inacabada a despeito dos caminhos percorridos, das centenas de horas de
leitura, de planejamento, de reflexão, debates, práticas e tudo outra vez e
novamente, ano após ano, e ainda assim, inacabada, o professor encontrará todo
tipo de barreira à aplicação de uma pedagogia da autonomia, e mesmo quando
assim proceder, poderá se deparar com resultados frustrantes em sua sala de
aula e é natural que isso ocorra, entretanto, não é um problema em si, pois
pior e inaceitável seria, não que o professor erre ou até mesmo fracasse em
alguns casos, mas que seus alunos e a comunidade lhe julgasse desnecessário,
ou, nas palavras do autor: “O pior juízo é o que considera o autor uma ausência
na sala”.
A guisa de conclusão, compreendo
que nossa busca por uma pedagogia da autonomia, deve se deve dar a todo
instante e em todo lugar, afinal de contas quem de nós seria convencido por
alguém que apenas falasse, mas nunca praticasse conforme seus discursos?
Imprescindível é sermos coerente dentro e fora da sala de aula, e, dessa forma buscar
compreendermos nitidamente não apenas os desafios, mas termos esperança na
mudança, a curiosidade crítica, sermos epistemologicamente curiosos para que nosso
sonho de ensinar e de continuarmos aprendendo não pereça, para que seja
possível e viável fazer com que nossos alunos sonhem seus próprios sonhos, e
que sejam férteis, transformadores e que nestes também caibam a educação e o
gesto poderoso e amoroso de ensinar novamente, como caminho, caminhada e modo
de vida, sempre com uma pedagogia autônoma para construção de saberes
significativos e necessários, por um mundo.
Belém, 06 de Junho de 2022.