domingo, 19 de junho de 2022

 MANIFESTO INDIGNADO

Não precisa ser um grande analista de fatos para perceber a barbárie na qual nos metemos quando uma caterva de imbecis elegeu um delinqüente para dirigir o executivo do país. 

Afirmo sem medo de errar que quem matou Bruno Pereira (indigenista)e o jornalista inglês, foram as mesmas pessoas que mataram Marielle Franco e seu motorista. Digo isso, porque mesmo não tendo os mesmos nomes ou cpfs, são o mesmo de assassinos. Gente que vive apenas pros seus próprios umbigos.

E hoje, vivemos num país no qual o mandatário incentiva e autoriza essa carnificina contra os defensores do povo.

Sem alongarme, acredito que só uma derrota massacrante nas urnas e depois a prisão por dezenas de anos desse animal chamado Jair, é que voltaremos a viver no Brasil que merecemos.


Belém, 17 de junho de 2022.


Nei Bitencourt, artista, pintor e comunista revolucionário.







 Intercept, Sábado, 18 de junho de 2022

A Amazônia é deles 







Morte de indigenista e de jornalista é consequência direta da política do Exército para a Amazônia.


O cruel assassinato de Bruno Araújo Pereira e Dom Phillips, temido desde o desaparecimento deles no Vale do Javari e confirmado na quarta passada, é uma consequência direta do projeto dos militares brasileiros – particularmente os do Exército – para a Amazônia brasileira.




Vamos recapitular: tão logo depuseram o governo legítimo de João Goulart e se aboletaram no recém-inaugurado Palácio do Planalto, em 1964, os ditadores fardados puseram em marcha seu projeto paranóico e destruidor para a Amazônia.

Em 1966, o governo de Castello Branco criou a Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia, a Sudam. Falando no lançamento dela, o ministro do Planejamento, Roberto Campos – o Paulo Guedes de Castello –, profetizava a "verdadeira" vocação amazônica: a mineração. 

Em 1970, com o lançamento da Transamazônica – o atoleiro mais caro já construído pela humanidade, construído sobre muito sangue indígena –, os fardados exultavam: a rodovia levaria "gente" para a região, a Amazônia seria colonizada, se desenvolveria e seria finalmente "brasileira". "Ocupar para não entregar": esse era o lema dos militares para a região.

Uma propaganda de 1972 deixa bem claro que tipo de colonização, de desenvolvimento, os fardados vislumbravam: “Toque sua boiada para o maior pasto do mundo”, dizia o anúncio. “Na Amazônia a terra é barata e sua fazenda pode ter todo o pasto que os bois precisam. Sem frio ou estiagem queimando o capim, o gado fica bonito de janeiro a dezembro”.

Não é preciso ser brilhante para perceber de cara alguns dos problemas do planejamento liberal-militar. Para começar, já havia gente na Amazônia: os indígenas que vivem na região desde muito antes da chegada dos europeus à América e da invenção do Exército brasileiro. Eles eram vistos como um empecilho a ser superado. Tampouco se pensou na viabilidade econômica do projeto mirabolante. Naturalmente, a aventura deu errado para a maioria dos colonos, e estima-se que 85% dos primeiros colonizadores desistiram após algum tempo.

O estrago, contudo, já estava feito. A política é apontada como a origem de muitos dos conflitos fundiários que até hoje perduram na região. A lógica de ter na floresta todo o pasto com que um pecuarista poderia sonhar segue a ser o motor da devastação da floresta pelo agronegócio brasileiro, que corrói a floresta a partir do oeste do Brasil. Para piorar, em 1979, início do ocaso da ditadura militar, um novo ingrediente seria acrescido à mistura: o garimpo, com a descoberta de jazidas de ouro na Serra dos Carajás, no Pará. Serra Pelada, como se tornaria conhecida a mina, atraiu milhares de aventureiros à região.

Quarenta anos depois, em 2019, o início do governo Bolsonaro marcou a retomada do projeto da ditadura para a Amazônia. A bem da verdade, até que demorou: ela já era reclamada publicamente desde 2005 pelo general Augusto Heleno, à época comandante militar da Amazônia, que se opôs frontalmente à demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, lar de 20 mil indígenas Macuxis, Uapixanas, Ingaricós, Taurepangues e Patamonas.  

A terra indígena na fronteira com a Venezuela causa urticária severa nos militares que seguem a acreditar no "ocupar para não entregar". Na cabeça paranóica dessa gente, é um convite à "invasão" da Amazônia por "inimigos da pátria", uma definição que abarca do vizinho chavista a ONGs ambientalistas estrangeiras, missionários católicos progressistas e a ideia da "internacionalização da região", particularmente temida desde o início das pressões globais pela preservação da floresta nos anos 1980. 

Para estes militares, há uma “grande estratégia indireta” de anulação do estado brasileiro na Amazônia. Eles temem, por exemplo, que países estrangeiros apoiem a fundação de novas nações indígenas – os Yanomami brasileiros, por exemplo, se juntariam aos venezuelanos na criação da nação Yanomami. 

É o tipo de ideário que voltou a dominar as políticas para a região com a ascensão de Bolsonaro, Heleno etc. Em setembro de 2019, publicamos esta reportagem sobre os militares e a Amazônia, que segue tristemente atual. Meses antes, em julho, questionado por Dom Phillips sobre a preocupação global com a floresta, o presidente disse o seguinte: "Primeiro você tem que entender que a Amazônia é do Brasil, não é de vocês".

"Do Brasil", para Bolsonaro, quer dizer "de gente como eu": agropecuaristas, garimpeiros, pescadores, caçadores. Mas não indígenas, ambientalistas, jornalistas que denunciam a devastação ambiental e o genocídio de etnias. Essa lógica paranóica enxerga nos indigenistas e antropólogos da Funai inimigos, e não servidores públicos empenhados em defender o direito dos brasileiros originários. Na semana passada, publicamos reportagem sobre um estudo que radiografou a destruição da política indígena brasileira. 

É parte do mesmo projeto político que encheu o Ibama e o ICMBio de policiais militares aposentados, exonerou o delegado da Polícia Federal que ousou investigar a boiada de Ricardo Salles e recebeu com honras, no Palácio do Planalto, o major do Exército Sebastião Curió, interventor militar em Serra Pelada – e, antes disso, comandante do massacre da guerrilha do Araguaia, também na Amazônia. Ao desmontar o estado brasileiro, Bolsonaro manda um recado claro a ladrões de madeira, garimpeiros, pescadores e caçadores ilegais – e também narcotraficantes que usam a região do Vale do Javari para escoar cocaína produzida no Peru e na Colômbia: está tudo liberado.

Quando Bruno e Dom foram dados como desaparecidos, se questionou a demora e a falta de coordenação das autoridades – particularmente as do Exército – em agir na busca deles. Na visão de quem definiu e segue a trabalhar na lógica do "ocupar para não entregar", gente como eles era um problema. Buscá-los estava longe de ser prioridade. Já a morte deles foi uma mera consequência da política que privilegia o garimpo, a grilagem de terras, a devastação ambiental e o genocídio indígena.


No Brasil todo – mas na Amazônia em especial –, o horror da ditadura voltou com tudo.

quarta-feira, 8 de junho de 2022

ESCOLA PRA QUÊ?

 






 

REFLEXÕES SOBRE A PEDAGOGIA DA AUTONOMIA[1] DE PAULO FREIRE, por José Pessôa do Rêgo Lobo[2]

 

No livro “Pedagogia da Autonomia – Saberes Necessários à Prática Educativa” de Paulo Freire, a partir das reflexões que pude tirar do estudo mais detido segundo capítulo, além de outras que sobrevoaram a extensa, profunda e imprescindível obra o autor, observei que a todo momento o mesmo reafirma a necessidade de uma práxis dialética coerente na qual a vida e a obra de ensinar são, por assim dizer, intrinsecamente enlaçadas.

É, interessante destacar a forma como seus ensinamentos são apresentados, com uma expertise ímpar, Freire nos brinda com seu método absolutamente singular de facilitador de saberes e nos proporciona uma construção argumentativa, sempre exemplificado a partir de elementos do cotidiano, valendo-se de uma linguagem simples, compreensível a qualquer indivíduo razoavelmente alfabetizado, de modo que desde a escolha das palavras nosso saudoso patrono nos semeia com testemunhos do que vem a ser suas práticas e concepção de mundo, e, mais ainda, de que forma devemos conceber o conhecimento científico.

Desta forma, pode-se dizer que pautado sempre pelas demandas reais de sujeitos concretos historicamente determinados, constrói um conhecimento significativo a partir de temas geradores, por isso mesmo, ao implementar sua metodologia de ensino e as bases epistemológicas que informam seu pensar-agir-pensar - num ciclo infindo que em cada volta pretende agregar novos elos - sujeitos reais invadidos muitas vezes de modo perverso pela dureza de um sistema político meticulosa e metabolicamente projetado para reproduzir alienação, esquecimento, domínio e destruição, a partir de poucos para toda da vida planetária e quase a totalidade dos humanos, em particular, ele propõem a necessidade de mudanças radicais em todos os níveis do existir e, neste sentido, busca nos favorecer com ferramentas que, enquanto protagonistas, estes (todos e todas nós), possamos transformar de forma qualitativamente superior nossas realidades, isto é, que vivamos em um mundo cercado de bonitezas para todos os lados, e não mais de misérias.

Sendo assim, Paulo Freire parte, a meu ver, de algumas premissas incontornáveis em seu pensamento, as quais penso compor entre si uma dialética viva, sobretudo em três eixos centrais dos quais todo o constructo se lança:

a) a compreensão de que os indivíduos, em suas multiplicidades únicas, idiossincrasias, histórias de vida e modo de (re)agir ao mundo não poderão ser jamais, de modo absoluto, marionetes de uma realidade imposta desde fora, por forças estruturantes ou atitudes alheias às suas necessidades, pois serão sempre (mesmo que muitas vezes de forma fragmentada e alienada), sujeitos, protagonistas de sua própria realidade. Neste sentido, professores, estudantes, pesquisadores, merendeiros, vigilantes, pais/mães de alunos, comunidade de entorno, enfim, todos e todas as pessoas que direta, indiretamente ou até avessamente aos processos de ensino-aprendizagem, compõe o grande teatro de eventos da História da Sociedade que é construída diuturnamente;

b) A realidade sócio-histórica e suas muitas facetas, tais como as econômicas, psicológicas, ambientais e educacionais são parte de um processo mais geral de um modo de produção denominado Capitalismo, apresentando-se como um conjunto sistêmico de relações econômicas e sociais que atravessam toda vida em sociedade e todos os aspectos da realidade objetiva e subjetiva dos indivíduos, nesse sentido, como constructo humano, histórica e socialmente determinável, pode e deve ser entendido como algo mutável, finito, e não auto existente, atemporal ou pior ainda, dado por Deus para que de joelhos, em culpa e aterrorizados cumpramos passivamente.

c) Uma proposta político-pedagógica pautada por uma epistemologia de novo tipo, cujas raízes, tais quais às de uma velha seringueira, estão profundamente fincadas no solo fértil das experiências que subjazem nossas existências inacabadas, contraditórias e permeáveis. Nesse contexto, as escolhas ontológicas e gnosiológicas informam o professor da necessidade observar atentamente seus próprios mecanismos de atuação (desde os psicológicos aos pragmáticos), embasando-se em uma linguagem que derruba muros, mesmo erguendo trincheiras, com um vocabulário que estreita margens, que são pontes, posto que estão sempre preenchidas de signos e significados, não só aqueles que se deseja implementar, compartilhar, favorecer, mas também, atento e vigilante aos sentidos que cada um carrega consigo.

Dessas três premissas se pode depreender que o papel dos professores conscientes é tomar as rédeas do processo de ensino-pesquisa-aprendizagem a partir de seu lugar na sociedade, seu lugar de luta de classes, no seu lugar geográfico, no seu locus psicossocial, e, partindo desses “lugares”, compreendendo as peculiaridades destes cenários, buscar apreender pela experimentação, pela vivência no real, mas também pela pesquisa e pela leitura, dar-se a conhecer aqueles para os quais sua dedicação (a do professor) está ou deveria estar centrada, diuturnamente, isto é, os estudantes, os aprendentes.

Desse modo, saber quem são, como vivem, como falam, se têm fome, se sofrem abusos morais, psicológicos ou sexuais, se têm um lápis, se moram perto ou muito distante da escola, enfim, ou seja, conhecê-los e (re)conhecer-se a si mesmo, pelos mesmos mecanismos, caminhar com a implementação de seu ensino-pesquisa-aprendizagem-ensino-pesquisa-aprendizagem - dialógica e dialeticamente criadores de realidades.

Sem essas bases não se poderia erguer nenhum patamar de conhecimento que sustentasse a possibilidade de transformação da realidade e, para Paulo Freire, é impensável que um professor, ou quem quer que seja, se disponha a operar seu labor sem levar em conta a necessidade urgente de transformação do establishment, do atual estado de miserabilidade e destruição da vida em escalas crescentes rumo à barbárie, e mais, o dever da esperança revolucionária que age de forma drástica, permanentemente, propondo mudanças desde o nível subjetivo individual às políticas públicas empregadas pelo Estado, e no meio de tudo a educação como caminho, como ferramenta para caminhada e destino final.

Ao tomar posse desses compromissos o professor deve ter em mente que “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar a possibilidade para a sua própria produção ou a sua construção” e, assim procedendo ele se põe a “pensar certo”, reconhecendo nossas limitações enquanto pessoas em construção com saberes também inacabados e essa “consciência do inacabado” presume uma decisão de “assumir o direito e o dever de optar, de decidir, de lutar, de fazer política” onde o pensar e o fazer não estão dissociados, no qual esperar para que o professor esteja “pronto, inteiramente preparado” para só então começar a lecionar seria impensável e, em certa medida expressão de um idealismo estéril e até um ato de absoluta falta de empatia, sobretudo com as novas gerações imersas desde o nascimento em um mundo distópico, fascistizado e antinatural.   

Compreender-se enquanto protagonista “É a posição de quem luta para não ser apenas objeto, mas sujeito também da História”. E sentir-se inacabado, inconcluso é permanecer nos processos sociais de busca. Pois “É na inconclusão do ser, que se sabe com o tal, que se funda a educação com o processo permanente”. E dessa forma ao ensinar com respeito à autonomia do ser, e respeitando-a, o professor necessita ser vigilante, não como ato persecutório contra os demais, senão enquanto coletivo ético, notar-se a si mesmo antes que tudo. E ainda, é na “vigilância do meu bom senso”, diz Paulo Freire, que podemos lecionar com muita humildade e tolerância, no intuito de alcançamos “conhecer as diferentes dimensões que caracterizam a essência da prática, o que me pode tornar mais seguro no meu próprio desempenho”.

A convicção de mudança, de que a mudança de postura de si mesmo, se seu modo de perceber e construir o mundo é que passamos a compreender, mais que compreender, ter a “convicção de que a mudança é possível”, e é urgente.

Nessa caminhada, sempre inacabada a despeito dos caminhos percorridos, das centenas de horas de leitura, de planejamento, de reflexão, debates, práticas e tudo outra vez e novamente, ano após ano, e ainda assim, inacabada, o professor encontrará todo tipo de barreira à aplicação de uma pedagogia da autonomia, e mesmo quando assim proceder, poderá se deparar com resultados frustrantes em sua sala de aula e é natural que isso ocorra, entretanto, não é um problema em si, pois pior e inaceitável seria, não que o professor erre ou até mesmo fracasse em alguns casos, mas que seus alunos e a comunidade lhe julgasse desnecessário, ou, nas palavras do autor: “O pior juízo é o que considera o autor uma ausência na sala”.

A guisa de conclusão, compreendo que nossa busca por uma pedagogia da autonomia, deve se deve dar a todo instante e em todo lugar, afinal de contas quem de nós seria convencido por alguém que apenas falasse, mas nunca praticasse conforme seus discursos? Imprescindível é sermos coerente dentro e fora da sala de aula, e, dessa forma buscar compreendermos nitidamente não apenas os desafios, mas termos esperança na mudança, a curiosidade crítica, sermos epistemologicamente curiosos para que nosso sonho de ensinar e de continuarmos aprendendo não pereça, para que seja possível e viável fazer com que nossos alunos sonhem seus próprios sonhos, e que sejam férteis, transformadores e que nestes também caibam a educação e o gesto poderoso e amoroso de ensinar novamente, como caminho, caminhada e modo de vida, sempre com uma pedagogia autônoma para construção de saberes significativos e necessários, por um mundo.    

 

Belém, 06 de Junho de 2022.



[1] Pedagogia da Autonomia – Saberes necessários à prática educativa / Paulo Freire. São Paulo: Paz e Terra, 1996 – (Coleção Leitura). ISBN 85-219-0243-3.

[2] José Pessôa do Rêgo Lobo, graduando em Letras Espanhol (UFPA) e em História (UNIP), colaborador do projeto de pesquisa “A utilização dos recursos didático-tecnológicos na aprendizagem de espanhol na Amazônia: a voz dos alunos do Curso de Letras-Espanhol da Universidade Federal do Pará” coordenado pelo Dr. Carlos Cernadas Carrera e do Projeto de Ensino, Pesquisa e Extensão “Guamá Bilíngue”, http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/40555, coordenado pela Drª. Rita de Cássia Paiva

quinta-feira, 2 de junho de 2022

É PRECISO DAR NOME AS COISAS

 

É PRECISO DAR NOME AS COISAS, por José Pessôa do Rêgo Lobo[1]




 

Entre nós, brasileiros ou não, que vivem e morrem nesse país, é comum ouvir e ler certas frases, verdadeiros jargões publicitários, que afirmam e reafirmam uma narrativa, um conjunto de ideias, valores, crenças e hábitos que ao serem repetidas, diuturnamente, acabam por serem, ao fim das contas, reproduzidas na realidade.

O Brasil é e foi, e continuará sendo, como nas estórias infantis nas quais cada criancinha pensa e sente quando ouve um “Era uma vez...”, a alegria ou o terror de um eterno agora que nunca se materializa. É então que nos perpetuamos, sempre na voz passiva como “o país do futuro”; “um país de gente cordial e hospitaleira”; “uma nação soberana gigante por natureza”; “o país do esquecimento”; do “ame-o ou deixe-o”; “o Brasil não é para amadores!”, dizem... todas, proferidas depois da célebre “Independência ou morte”[2], essa sim, acertou na mosca.

Contudo, o ato de esquecer, que no âmbito psicanalítico costuma ser entendido como fenômeno psíquico no qual o sujeito para sua autodefesa ou negação, defesa contra um mundo opressor e/ou sentimentos e impulsos inadmissíveis ao sol da verdade[3], dessa tão esmurrada e contorcida e relativizada palavra, quando passa para o campo histórico e do Estado, já não pode mais omitir-se de seus verdadeiros fins, ou pode?!

Ao longo de séculos o Estado brasileiro vem promovendo uma deliberada ocultação de fatos históricos e seus sujeitos concretos, suas narrativas, seus legados e anseios, seus nomes e suas, digo, nossas, ancestralidades. Em um permanente silenciamento que transpassa toda a diáspora negra, desde o colonialismo ao epistemicídio[4]. Seja quando Ruy Barbosa, então Ministro da Fazenda, em 13 de maio de 1891 determinou a queima[5] de todos os apontamentos ligados aos homens, mulheres e crianças trazidos na condição de escravos de África, incluindo registros de ancestralidade, matrículas de importação e tributos oficiais, seja na forma do genocídio urbano, com mais de 40 mil mortes violentas[6] por ano, década após década, seja com o encarceramento em massa de jovens negros e negras, periféricos, que se manifesta cruamente fetichizado na cultura do “bandido bom é bandido morto”, contato que não seja um industrial, político ou intelectual branco, é óbvio!

Desde de que embarcados, suas línguas, linguagens e nomes também deveriam ser esquecidos, seus nomes originários não mais poderiam ser ditos. Mas não seremos silenciados, e, como nos ensina a Drª. Sueli Carneiro[7], esse silenciamento, esse “projeto de destruição e domínio” construtores de epistemicídio sistemáticos, “não se realiza cabalmente graças ao não esquecimento e ao rememoramento, nas experiências históricas que se configuram em resistência, produzindo massa crítica sobre diversos temas” e que sempre nos chama a atualizar esta “democracia”, expandido seus limites da atual barbárie para um paradigma civilizatório plural-não-opressor. De modo semelhante, tal qual nossos irmãos ultramarinos, milhões de nossas irmãs e irmãos “indígenas”, que até hoje vivem uma infinda diáspora em terra própria, também tiveram seus nomes, línguas e tradições renomeados. Agora sei bem que índios não são[8], então quem somos todos nós?!

Ainda ontem, enquanto lutava por sobrevivência e necessidade de sonhar, entre livros, diálogos, risos e protestos, em minha lida diária de acadêmico de Letras Espanhol na UFPA, foi assassinado pelo Estado brasileiro, através de agentes da polícia rodoviária federal, em uma câmara de gás improvisada, meu irmão sergipano Genivaldo de Jesus Santos, outro homem negro como tantos, “ou quase pretos ou quase brancos”[9] cuja história será em breve também esquecida, como sempre é por aqui, donde as musas também não podem cantar[10] e nem contar as memórias de cárceres manicomiais, outrora chamados hospitais, mas não só entre nós, pois onde quer que a mão branca colonizadora tenha impôs suas mazelas o mesmo ocorre, como outrora na mídia global e a agora já esquecido, caso estadunidense de G. Floyd. E as vidas negras ainda importam?!

Também devemos esquecer a frase “o problema não é a autoridade maior. É o guarda da esquina”?! Dita pelo “homem de bem e patriota” Pedro Aleixo, em 13 de setembro de 1968, no ato de decretação do AI-5[11], que também serviu e serve para nos contar uma história, aquela do Outro, onde o presidente e seus asseclas não têm culpa e nem responsabilidade, e, portanto, podem ser esquecidos. Entretanto tais “guardas da esquina” são a ponta de lança, o cassetete, a coronhada, o coturno e a bala do “Estado democrático de Direito” e seus homens de confiança, os agentes de segurança pública, seja pelo racismo estrutural[12] e/ou pelo abandono mental desses sujeitos, que são muitas das vezes deformados pelas práticas, usos e relações com grupos milicianos ou político-narcotraficantes próprios do momento histórico concreto no qual estão inseridos, mutilam a humanidade de todos, fazendo cenas de tortura, abuso de autoridade ou excesso de força serem festejados diariamente em telejornais e “grupos de Whatsapp das famílias conservadoras e patriotas” de todo país.

Mas é preciso dizer o nome das coisas, e é imprescindível não esquecer e contar desde nossas perspectivas, porque não podemos continuar sendo um “país sem memória”, “um povo sem alma” e o negro, o indígena de nós asfixiado naquele caveirão em Sergipe, nas missões jesuíticas ou nos tumbeiros ibéricos não podem continuar nos definindo, pois, como muito bem negritou o pesquisador e advogado guineense, Dr. Nathanael Fona, em evento recente em memória do dia internacional da África[13] (25 de maio), temos sim uma história multimilenar e o silencio dos esquecidos, daqueles que se calam ou assistem bárbaros homicídios – ao vivo ou pelos noticiários – como se fossem estórias sobre Outros, permitirá a perpetuação de uma população mansa, domesticada, controlada, esquecida de si, ou como diria Karl Marx, alienada[14],  e em “uma nação que desconhece o seu passado, não compreende o presente tampouco existe a possibilidade de projeção de um futuro próspero”, relegando a próxima geração os mesmos suplícios vividos por nossos antepassados e por nós mesmos.       

O poeta e raper de Brasília, G.O.G, outro Genivaldo, corporificava tudo isso ao bradar na canção “Carta à Mãe África”, do álbum “Aviso às gerações” (2006) “A carne mais barata do mercado é a negra, a carne mais marcada pelo Estado é a negra”.

É preciso dar nome as coisas!

O nazifascismo já não é micro, está disseminado em nossa sociedade, a mentalidade e práticas eugenistas que deixariam Mengele[15] orgulhoso ceifaram mais de meio milhão de vidas durante a pandemia, vidas negras periféricas em mais de 80%[16] dos casos,  seu líder público atual, por menos intelectual que seja, Jair Bolsonaro (ainda presidente), não está só, tampouco nu e a concentração de renda, assim como o corte étnico-pecuniários de seus apoiadores exibem indubitavelmente a continuidade simbiótica e macabra dessa parceira. O Capitalismo continua gerando fome e escassez entre nós, envenenando mananciais e plantações, estuprando nossas crianças, assassinando homossexuais, massacrando nossas almas por muitos níveis de epistemicídio e pelo racismo estrutural pela negação da centralidade de uma educação pública gratuita, socialmente referenciada e de qualidade. Por isso também é preciso dizer, sem esquecer o nome das coisas, quem somos e que nação queremos ter, que futuro deixaremos para nossa descendência.   

 

Belém, 25 de maio de 2022.



[1] José Pessôa do Rêgo Lobo, graduando em Letras Espanhol (UFPA) e em História (UNIP), colaborador do projeto de pesquisa “A utilização dos recursos didático-tecnológicos na aprendizagem de espanhol na Amazônia: a voz dos alunos do Curso de Letras-Espanhol da Universidade Federal do Pará” coordenado pelo Dr. Carlos Cernadas Carrera e do Projeto de Ensino, Pesquisa e Extensão “Guamá Bilíngue”, http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/40555, coordenado pela Drª. Rita de Cássia Paiva. Apoiador da Chapa 2 “Todas as Falas”, para o ILC/UFPA (2022).

 [2] Título da pintura de Pedro Américo - e não uma frase dita por quem quer que seja - concluída em 1888, de 415 cm x 7660 cm, retratando um evento que nunca ocorrera, o da heroica proclamação da República, bradada do alto de um cavalo branco, às margens do Ipiranga, por Dom Pedro II.

[3]  "a verdade, nunca se pode dizê-la, a não ser pela metade" (LACAN, 1992, p.34), posto que ela "[se] revela complexa por essência, humilde em seus préstimos e estranha à realidade, (...) aparentada com a morte e, pensando bem, basicamente desumana" (LACAN, 1998, p. 437).

[4] O termo “epistemicídio” foi cunhado primeiramente por Boa Ventura dos Santos, que o define como uma estratégia ainda mais cruel que os genocídios coloniais, porque “ocorreu sempre que se pretendeu subalternizar, subordinar, marginalizar práticas ou grupos sociais que possam marginalizar a expansão capitalista”. (Santos, 1995, p. 328). E pode ser entendido de modo genérico como o esforço de silenciamento e/ou genocídio das ideias, dos saberes dos povos lançados à condição de Outro, dos periféricos, marginais, dos pretos, cujas existências por si mesma “ofende” o stabelichment.

[5] Barbosa, Francisco (1988). Rui Barbosa e a queima dos arquivos (PDF). Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa.

 [6] Fórum Brasileiro de Segurança Pública 2019.

[7] (Carneiro, 2005), além de trechos extraídos da live do canal “Pensar Africanamente”, com título “Pensar Africanamente com Sueli Carneiro”, transmitido ao vivo em 25 de maio de 2022.

[8] Referência ao poema “Índio eu não sou” da pesquisadora e poetisa Márcia Kambeba.

[9] Extraído da canção “Haiti”, de Caetano e Gilberto Gil, lançada em 1993, álbum “Tropicária 2”.

[10] Mnemosyne canta "tudo o que foi, tudo o que é, tudo o que será"(3) (HESÍODO, 1927, p.15).

[11] SERBIN, Kenneth P. Diálogos na sombra: bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

[12] ALMEIDA, S. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019. 264 p. ISBN 978-85-98349-75-6.

[13] Realizado pela Associação de Estudantes Estrangeiros da UFPA, dirigida por Enock Akodedjro (Benin). Tendo como palestrantes os doutores Israël Sèwanow Hounsou (Benin), Sakanatou habi Yorouba (Benin) e Anacleto Anibal Xavier Domingos (Angola) e as graduandas Abigail Yawo Atsupui Duho (Gana), Renata Ramos (são Tomé e Príncipe).

[14] “A alienação da humanidade, no sentido fundamental do termo, significa perda de controle: sua corporificação numa força externa que controla os indivíduos com um poder hostil e potencialmente destruidor”. Teoria da Alienação em Marx. (Mésazáros, 1927).

[15] https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/josef-mengele.

[16] https://br.noticias.yahoo.com/bolsonaro-e-favorito-entre-mais-ricos-aponta-datafolha-154525148.html?guccounter=1&guce_referrer=aHR0cHM6Ly93d3cuZ29vZ2xlLmNvbS8&guce_referrer_sig=AQAAAIVeWfsvl3EECQSYUumVtN1Xx1MCAWCUgtBEfnrB6C_R9Zn-Hdqp0xBeC51a2keW_PI4O1ZQA0SCaIWh8lJ908eSz_J1i9kGZTHZEOR3Y6Io41NpXyBZYRG9jwG9p6TmH8pCKGUd0dHCVG6yHvuXvtGv6nz944tg7vU5IEHCawqF.