quarta-feira, 8 de junho de 2022

ESCOLA PRA QUÊ?

 






 

REFLEXÕES SOBRE A PEDAGOGIA DA AUTONOMIA[1] DE PAULO FREIRE, por José Pessôa do Rêgo Lobo[2]

 

No livro “Pedagogia da Autonomia – Saberes Necessários à Prática Educativa” de Paulo Freire, a partir das reflexões que pude tirar do estudo mais detido segundo capítulo, além de outras que sobrevoaram a extensa, profunda e imprescindível obra o autor, observei que a todo momento o mesmo reafirma a necessidade de uma práxis dialética coerente na qual a vida e a obra de ensinar são, por assim dizer, intrinsecamente enlaçadas.

É, interessante destacar a forma como seus ensinamentos são apresentados, com uma expertise ímpar, Freire nos brinda com seu método absolutamente singular de facilitador de saberes e nos proporciona uma construção argumentativa, sempre exemplificado a partir de elementos do cotidiano, valendo-se de uma linguagem simples, compreensível a qualquer indivíduo razoavelmente alfabetizado, de modo que desde a escolha das palavras nosso saudoso patrono nos semeia com testemunhos do que vem a ser suas práticas e concepção de mundo, e, mais ainda, de que forma devemos conceber o conhecimento científico.

Desta forma, pode-se dizer que pautado sempre pelas demandas reais de sujeitos concretos historicamente determinados, constrói um conhecimento significativo a partir de temas geradores, por isso mesmo, ao implementar sua metodologia de ensino e as bases epistemológicas que informam seu pensar-agir-pensar - num ciclo infindo que em cada volta pretende agregar novos elos - sujeitos reais invadidos muitas vezes de modo perverso pela dureza de um sistema político meticulosa e metabolicamente projetado para reproduzir alienação, esquecimento, domínio e destruição, a partir de poucos para toda da vida planetária e quase a totalidade dos humanos, em particular, ele propõem a necessidade de mudanças radicais em todos os níveis do existir e, neste sentido, busca nos favorecer com ferramentas que, enquanto protagonistas, estes (todos e todas nós), possamos transformar de forma qualitativamente superior nossas realidades, isto é, que vivamos em um mundo cercado de bonitezas para todos os lados, e não mais de misérias.

Sendo assim, Paulo Freire parte, a meu ver, de algumas premissas incontornáveis em seu pensamento, as quais penso compor entre si uma dialética viva, sobretudo em três eixos centrais dos quais todo o constructo se lança:

a) a compreensão de que os indivíduos, em suas multiplicidades únicas, idiossincrasias, histórias de vida e modo de (re)agir ao mundo não poderão ser jamais, de modo absoluto, marionetes de uma realidade imposta desde fora, por forças estruturantes ou atitudes alheias às suas necessidades, pois serão sempre (mesmo que muitas vezes de forma fragmentada e alienada), sujeitos, protagonistas de sua própria realidade. Neste sentido, professores, estudantes, pesquisadores, merendeiros, vigilantes, pais/mães de alunos, comunidade de entorno, enfim, todos e todas as pessoas que direta, indiretamente ou até avessamente aos processos de ensino-aprendizagem, compõe o grande teatro de eventos da História da Sociedade que é construída diuturnamente;

b) A realidade sócio-histórica e suas muitas facetas, tais como as econômicas, psicológicas, ambientais e educacionais são parte de um processo mais geral de um modo de produção denominado Capitalismo, apresentando-se como um conjunto sistêmico de relações econômicas e sociais que atravessam toda vida em sociedade e todos os aspectos da realidade objetiva e subjetiva dos indivíduos, nesse sentido, como constructo humano, histórica e socialmente determinável, pode e deve ser entendido como algo mutável, finito, e não auto existente, atemporal ou pior ainda, dado por Deus para que de joelhos, em culpa e aterrorizados cumpramos passivamente.

c) Uma proposta político-pedagógica pautada por uma epistemologia de novo tipo, cujas raízes, tais quais às de uma velha seringueira, estão profundamente fincadas no solo fértil das experiências que subjazem nossas existências inacabadas, contraditórias e permeáveis. Nesse contexto, as escolhas ontológicas e gnosiológicas informam o professor da necessidade observar atentamente seus próprios mecanismos de atuação (desde os psicológicos aos pragmáticos), embasando-se em uma linguagem que derruba muros, mesmo erguendo trincheiras, com um vocabulário que estreita margens, que são pontes, posto que estão sempre preenchidas de signos e significados, não só aqueles que se deseja implementar, compartilhar, favorecer, mas também, atento e vigilante aos sentidos que cada um carrega consigo.

Dessas três premissas se pode depreender que o papel dos professores conscientes é tomar as rédeas do processo de ensino-pesquisa-aprendizagem a partir de seu lugar na sociedade, seu lugar de luta de classes, no seu lugar geográfico, no seu locus psicossocial, e, partindo desses “lugares”, compreendendo as peculiaridades destes cenários, buscar apreender pela experimentação, pela vivência no real, mas também pela pesquisa e pela leitura, dar-se a conhecer aqueles para os quais sua dedicação (a do professor) está ou deveria estar centrada, diuturnamente, isto é, os estudantes, os aprendentes.

Desse modo, saber quem são, como vivem, como falam, se têm fome, se sofrem abusos morais, psicológicos ou sexuais, se têm um lápis, se moram perto ou muito distante da escola, enfim, ou seja, conhecê-los e (re)conhecer-se a si mesmo, pelos mesmos mecanismos, caminhar com a implementação de seu ensino-pesquisa-aprendizagem-ensino-pesquisa-aprendizagem - dialógica e dialeticamente criadores de realidades.

Sem essas bases não se poderia erguer nenhum patamar de conhecimento que sustentasse a possibilidade de transformação da realidade e, para Paulo Freire, é impensável que um professor, ou quem quer que seja, se disponha a operar seu labor sem levar em conta a necessidade urgente de transformação do establishment, do atual estado de miserabilidade e destruição da vida em escalas crescentes rumo à barbárie, e mais, o dever da esperança revolucionária que age de forma drástica, permanentemente, propondo mudanças desde o nível subjetivo individual às políticas públicas empregadas pelo Estado, e no meio de tudo a educação como caminho, como ferramenta para caminhada e destino final.

Ao tomar posse desses compromissos o professor deve ter em mente que “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar a possibilidade para a sua própria produção ou a sua construção” e, assim procedendo ele se põe a “pensar certo”, reconhecendo nossas limitações enquanto pessoas em construção com saberes também inacabados e essa “consciência do inacabado” presume uma decisão de “assumir o direito e o dever de optar, de decidir, de lutar, de fazer política” onde o pensar e o fazer não estão dissociados, no qual esperar para que o professor esteja “pronto, inteiramente preparado” para só então começar a lecionar seria impensável e, em certa medida expressão de um idealismo estéril e até um ato de absoluta falta de empatia, sobretudo com as novas gerações imersas desde o nascimento em um mundo distópico, fascistizado e antinatural.   

Compreender-se enquanto protagonista “É a posição de quem luta para não ser apenas objeto, mas sujeito também da História”. E sentir-se inacabado, inconcluso é permanecer nos processos sociais de busca. Pois “É na inconclusão do ser, que se sabe com o tal, que se funda a educação com o processo permanente”. E dessa forma ao ensinar com respeito à autonomia do ser, e respeitando-a, o professor necessita ser vigilante, não como ato persecutório contra os demais, senão enquanto coletivo ético, notar-se a si mesmo antes que tudo. E ainda, é na “vigilância do meu bom senso”, diz Paulo Freire, que podemos lecionar com muita humildade e tolerância, no intuito de alcançamos “conhecer as diferentes dimensões que caracterizam a essência da prática, o que me pode tornar mais seguro no meu próprio desempenho”.

A convicção de mudança, de que a mudança de postura de si mesmo, se seu modo de perceber e construir o mundo é que passamos a compreender, mais que compreender, ter a “convicção de que a mudança é possível”, e é urgente.

Nessa caminhada, sempre inacabada a despeito dos caminhos percorridos, das centenas de horas de leitura, de planejamento, de reflexão, debates, práticas e tudo outra vez e novamente, ano após ano, e ainda assim, inacabada, o professor encontrará todo tipo de barreira à aplicação de uma pedagogia da autonomia, e mesmo quando assim proceder, poderá se deparar com resultados frustrantes em sua sala de aula e é natural que isso ocorra, entretanto, não é um problema em si, pois pior e inaceitável seria, não que o professor erre ou até mesmo fracasse em alguns casos, mas que seus alunos e a comunidade lhe julgasse desnecessário, ou, nas palavras do autor: “O pior juízo é o que considera o autor uma ausência na sala”.

A guisa de conclusão, compreendo que nossa busca por uma pedagogia da autonomia, deve se deve dar a todo instante e em todo lugar, afinal de contas quem de nós seria convencido por alguém que apenas falasse, mas nunca praticasse conforme seus discursos? Imprescindível é sermos coerente dentro e fora da sala de aula, e, dessa forma buscar compreendermos nitidamente não apenas os desafios, mas termos esperança na mudança, a curiosidade crítica, sermos epistemologicamente curiosos para que nosso sonho de ensinar e de continuarmos aprendendo não pereça, para que seja possível e viável fazer com que nossos alunos sonhem seus próprios sonhos, e que sejam férteis, transformadores e que nestes também caibam a educação e o gesto poderoso e amoroso de ensinar novamente, como caminho, caminhada e modo de vida, sempre com uma pedagogia autônoma para construção de saberes significativos e necessários, por um mundo.    

 

Belém, 06 de Junho de 2022.



[1] Pedagogia da Autonomia – Saberes necessários à prática educativa / Paulo Freire. São Paulo: Paz e Terra, 1996 – (Coleção Leitura). ISBN 85-219-0243-3.

[2] José Pessôa do Rêgo Lobo, graduando em Letras Espanhol (UFPA) e em História (UNIP), colaborador do projeto de pesquisa “A utilização dos recursos didático-tecnológicos na aprendizagem de espanhol na Amazônia: a voz dos alunos do Curso de Letras-Espanhol da Universidade Federal do Pará” coordenado pelo Dr. Carlos Cernadas Carrera e do Projeto de Ensino, Pesquisa e Extensão “Guamá Bilíngue”, http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/40555, coordenado pela Drª. Rita de Cássia Paiva

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