1. REFLEXÃO SOBRE O TEXTO: A PSICOPATOLOGIA DO TECIDO SOCIAL EM FRANTZ FANON: A DUPLA NEGAÇÃO DA IDENTIDADE E DA ALTERIDADE* , por José Pessôa do Rêgo Lobo
A necessidade de refletir sobre as identidades assumidas ou impostas no
que se reconhece como Civilização Cristã Ocidental[1], sobre
os modelos de sociabilidades e apagamentos destas, bem como acerca dos processos
dialéticos entre esquemas nebulosos que variam conjunturalmente, é cada vez
mais relevante, pois não se pode constituir um processo de ensino-aprendizagem,
ou qualquer outro processo civilizatório, sem que se discutir a sérios as bases
do que viria a ser esta tal civilização e quais papéis são reservados para
quais funções, isto é, quem tem a primazia do saber, a chama de Prometeu, e quem foram, vem sendo, continuarão sendo (?) os desprovidos de luz própria? Esta
reflexão é imperiosa e a relação que teremos com nossos alunos e seus tutores,
para mencionar uma pequena faísca de sua influência, está no bojo dos
desdobramentos possíveis desta questão.
De modo geral, para amplas camadas das sociedades humanas, isto é, em seus
extratos excluídos de todos os meios de subsistência – para os quais a única
saída é a venda de suas forças de trabalho – a realidade é a submissão absoluta
aos mandos absolutistas do Estado, seus agentes e sócios prioritários, de modo
que suas demandas de Vida, suas gramáticas e epistemes sofrem apagamentos e
deformações históricas tanto em espectros de curta, quanto de longa duração.
A queima de documentos referentes à escravidão de africanos no Brasil,
determinada pelo então presidente do
STF, Ministro Rui Barbosa[2] em 14 de
dezembro de 1890; o assassinado de mais de 47 mil pessoas por ano[3] vítimas
de mortes violentas em nosso país, sendo 76% dessas pessoas negras, ou o
apagamentos das sociabilidades das mães e pais negros que sobrevivem sem
conseguir cuidar adequadamente dos seus próprios filhos, mas que são forçados
pelas circunstâncias a cuidar “das coisas” dos filhos brancos de seus patrões e
deles próprios, são partes de um mesmo processo que Boaventura chamou de
epstemicídio, e que não percorre apenas os elementos simbólicos, mas o Ser em
sí destes homens e mulheres matáveis, posto que invisíveis.
O pensador Giorgio Agamben,
ao refletir sobre estes apagamentos nos fala que “...à violência, isto é, a
morte insancionável que qualquer um pode cometer em relação a ele, não é
classificada nem como sacrifício, nem como homicídio, nem como sacrilégio”
Carvalho, 2020 (apud Giorgio Agamben)[4],
neste sentido, essa identidade fragmentária, é posta como eternamente oposta ao
Universalismo do cidadão civilizado, europeu, branco, cristão, cis, hetero,
proprietário e, porque não acrescentar, pai de família e homem de bem. E, da
mesma forma que a morte de todos aqueles é apagável e devem ser
normalizadas, suas lutas por reconhecimento e transfiguração desta condição
odiosa necessita ser constantemente reprovada, desclassificada e igualmente
transgredida, agora na condição de meros identitarismos.
Queremos reforçar
que esta negação-apagamento que torna a vida e a existência, o direito aos artefatos
culturais, as línguas e territórios, vem sendo instrumentalizada desde a
colonização, seguiu durante a ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985),
expressa em torturas e morticínios, na interdição do debate, na proibição da
Comissão Nacional da Verdade em levar seus trabalhos até as últimas consequências;
seja, anteriormente, na campanha Estatal de enviar para a Amazônia “homens sem
terras para terras sem homens”; seja atualmente, quando a morte consentida,
promovida, desejada por agentes do Estado, na pandemia de Covid-19, levou quase
um milhão de mortes evitáveis. Quem são essas vítimas, quais agentes Estatais serão
responsabilizados por esse genocídio?
Em
todos esses casos vemos a o acerto da percepção de Agambe, de que estas mortes são
descartáveis e permitíveis, e normalizadas, ja que estão fora de todos os
espaços, pois “não são classificadas nem como sacrifício, nem como homicídio,
nem como sacrilégio”, dito de outro modo, suas vidas não estão nem no campo do
sagrado, nem sob o arco da proteção jurídica soberana, previstas nas arcabouços
legais.
Nas palavras de Agamben
“soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar
um sacrifício, e sacra, isto é, matável e insacrificável, é a vida que foi
capturada nesta esfera”[5],
e a despeito de estarmos abordando muitas vezes o tema da morte, resgato agora
que está se pode proceder em muitas esferas e que esta invizibilização também
de se dá em gestos pequenos, e cotidianos que podem ser reproduzidos em
qualquer lugar, como na lada de aula, onde o modo de olhar para alguns alunos
(afetuosamente, com paciência e compreensão) é trocado ao se olhar para outros
(com desprezo, raiva, descrença e frustração) e, aqui indagamos o leitor: ao
construir a imagem mental ora proposta, de olhares diferentes para crianças
diferentes, para quais crianças você imaginou os olhares negativos e opressivos?
Para crianças brancas, loiras de olhos claros?
A crueldade destes
olhares, a ausência dos abraços em determinados corpos, geralmente negros,
geralmente de PCD´s, geralmente de autistas e outros modos divergentes de Ser,
diversos do Universal arquetípico, é também a crueldade que apaga e os mata, lenta
e diuturnamente. Por isso este debate exige ressonância, recordação e memória.
Neste sentido,
longe de crer que pudemos demonstrar a amplitude ou as possibilidades do trato
acadêmico devido às questões ora ventiladas, creio que fora possível ao menos
tornar irrefutável sua existência sem si, enquanto parte de um debate que não é
novo e que ganha centralidade nesta necrótica modernidade contemporânea.
REFERENCIAL
BIBLIOGRÁFICO
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sacer: O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte, Editora UFMG, pg.91.
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emancipação entre capitalismo e estado de exceção. In: Dilemas - Revista de
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http://dx.doi.org/10.1590/001152582019183.
DE
SOUSA SANTOS, Boaventura, Construindo as Epistemologias do Sul: Antologia
Esencial. Volume I: Para um pensamento alternativo de alternativas /
Boaventura de Sousa Santos; compilado por Maria Paula Meneses... [et al.]. - 1a ed. - Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO, 2018. V. 1,
688 p.; 20 x 20 cm - (Antologías del Pensamiento Social Latinoamericano y
Caribeño / Gentili, Pablo)
Anuário
Brasileiro de Segurança Pública / Fórum Brasileiro de Segurança Pública. – 1
(2006)- . – São Paulo: FBSP, 2023.
[1] O termo “civilização cristã ocidental” aparece em escritos políticos e
filosóficos a partir da elaboração do intelectual espanhol Miguel de Unamuno
(1864 - 1936).
[2] O Direito, Rio de Janeiro,
19(54): 160, jan.,-abr. 1891. Disponível em:< https://pt.wikipedia.org/wiki/Queima_dos_arquivos_da_escravid%C3%A3o_no_Brasil#/media/Ficheiro:Documento_da_queima_dos_arquivos_da_escravid%C3%A3o_no_Brasil_em_1890.png>
Acesso em: 13 mar 2024.
[3] Dados do ano de 2023
constantes no 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, disponível em:<
https://apidspace.universilab.com.br/server/api/core/bitstreams/c0c6abca-36ce-4469-aff1-6cdba95bf197/content>
Acesso
em 13 de mar 2024.
[4] BROCCO, P. Vida nua e
forma-de-vida em Giorgio Agamben e Karl Marx: Violência e emancipação entre
capitalismo e estado de exceção. In: Dilemas - Revista de Estudos de Conflito e
Controle Social, 9(1), 65- 90. Recuperado de https://revistas.ufrj.br/index.php/dilemas/article/view/7673,
pg.68
[5] AGAMBEN, Giorgio. (2000),
Homo sacer: O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte, Editora UFMG, pg.91.