quinta-feira, 14 de março de 2024

 

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1.         REFLEXÃO SOBRE O TEXTO: A PSICOPATOLOGIA DO TECIDO SOCIAL EM FRANTZ FANON: A DUPLA NEGAÇÃO DA IDENTIDADE E DA ALTERIDADE* , por José Pessôa do Rêgo Lobo

A necessidade de refletir sobre as identidades assumidas ou impostas no que se reconhece como Civilização Cristã Ocidental[1], sobre os modelos de sociabilidades e apagamentos destas, bem como acerca dos processos dialéticos entre esquemas nebulosos que variam conjunturalmente, é cada vez mais relevante, pois não se pode constituir um processo de ensino-aprendizagem, ou qualquer outro processo civilizatório, sem que se discutir a sérios as bases do que viria a ser esta tal civilização e quais papéis são reservados para quais funções, isto é, quem tem a primazia do saber, a chama de Prometeu, e quem foram, vem sendo, continuarão sendo (?) os desprovidos de luz própria? Esta reflexão é imperiosa e a relação que teremos com nossos alunos e seus tutores, para mencionar uma pequena faísca de sua influência, está no bojo dos desdobramentos possíveis desta questão.

De modo geral, para amplas camadas das sociedades humanas, isto é, em seus extratos excluídos de todos os meios de subsistência – para os quais a única saída é a venda de suas forças de trabalho – a realidade é a submissão absoluta aos mandos absolutistas do Estado, seus agentes e sócios prioritários, de modo que suas demandas de Vida, suas gramáticas e epistemes sofrem apagamentos e deformações históricas tanto em espectros de curta, quanto de longa duração.

A queima de documentos referentes à escravidão de africanos no Brasil, determinada  pelo então presidente do STF, Ministro Rui Barbosa[2] em 14 de dezembro de 1890; o assassinado de mais de 47 mil pessoas por ano[3] vítimas de mortes violentas em nosso país, sendo 76% dessas pessoas negras, ou o apagamentos das sociabilidades das mães e pais negros que sobrevivem sem conseguir cuidar adequadamente dos seus próprios filhos, mas que são forçados pelas circunstâncias a cuidar “das coisas” dos filhos brancos de seus patrões e deles próprios, são partes de um mesmo processo que Boaventura chamou de epstemicídio, e que não percorre apenas os elementos simbólicos, mas o Ser em sí destes homens e mulheres matáveis, posto que invisíveis.

O pensador  Giorgio Agamben, ao refletir sobre estes apagamentos nos fala que “...à violência, isto é, a morte insancionável que qualquer um pode cometer em relação a ele, não é classificada nem como sacrifício, nem como homicídio, nem como sacrilégio” Carvalho, 2020 (apud Giorgio Agamben)[4], neste sentido, essa identidade fragmentária, é posta como eternamente oposta ao Universalismo do cidadão civilizado, europeu, branco, cristão, cis, hetero, proprietário e, porque não acrescentar, pai de família e homem de bem. E, da mesma forma que a morte de todos aqueles é apagável e devem ser normalizadas, suas lutas por reconhecimento e transfiguração desta condição odiosa necessita ser constantemente reprovada, desclassificada e igualmente transgredida, agora na condição de meros identitarismos.

Queremos reforçar que esta negação-apagamento que torna a vida e a existência, o direito aos artefatos culturais, as línguas e territórios, vem sendo instrumentalizada desde a colonização, seguiu durante a ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985), expressa em torturas e morticínios, na interdição do debate, na proibição da Comissão Nacional da Verdade em levar seus trabalhos até as últimas consequências; seja, anteriormente, na campanha Estatal de enviar para a Amazônia “homens sem terras para terras sem homens”; seja atualmente, quando a morte consentida, promovida, desejada por agentes do Estado, na pandemia de Covid-19, levou quase um milhão de mortes evitáveis. Quem são essas vítimas, quais agentes Estatais serão responsabilizados por esse genocídio?

            Em todos esses casos vemos a o acerto da percepção de Agambe, de que estas mortes são descartáveis e permitíveis, e normalizadas, ja que estão fora de todos os espaços, pois “não são classificadas nem como sacrifício, nem como homicídio, nem como sacrilégio”, dito de outro modo, suas vidas não estão nem no campo do sagrado, nem sob o arco da proteção jurídica soberana, previstas nas arcabouços legais.

Nas palavras de Agamben “soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é, matável e insacrificável, é a vida que foi capturada nesta esfera”[5], e a despeito de estarmos abordando muitas vezes o tema da morte, resgato agora que está se pode proceder em muitas esferas e que esta invizibilização também de se dá em gestos pequenos, e cotidianos que podem ser reproduzidos em qualquer lugar, como na lada de aula, onde o modo de olhar para alguns alunos (afetuosamente, com paciência e compreensão) é trocado ao se olhar para outros (com desprezo, raiva, descrença e frustração) e, aqui indagamos o leitor: ao construir a imagem mental ora proposta, de olhares diferentes para crianças diferentes, para quais crianças você imaginou os olhares negativos e opressivos? Para crianças brancas, loiras de olhos claros?

A crueldade destes olhares, a ausência dos abraços em determinados corpos, geralmente negros, geralmente de PCD´s, geralmente de autistas e outros modos divergentes de Ser, diversos do Universal arquetípico, é também a crueldade que apaga e os mata, lenta e diuturnamente. Por isso este debate exige ressonância, recordação e memória.

Neste sentido, longe de crer que pudemos demonstrar a amplitude ou as possibilidades do trato acadêmico devido às questões ora ventiladas, creio que fora possível ao menos tornar irrefutável sua existência sem si, enquanto parte de um debate que não é novo e que ganha centralidade nesta necrótica modernidade contemporânea.

 

 *Texto de João Carvalho, disponível em: A psicopatologia do tecido social em Frantz Fanon: a dupla negação da identidade e da alteridade 


REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO

 

AGAMBEN, Giorgio. (2000), Homo sacer: O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte, Editora UFMG, pg.91.

 

BROCCO, P. Vida nua e forma-de-vida em Giorgio Agamben e Karl Marx: Violência e emancipação entre capitalismo e estado de exceção. In: Dilemas - Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, 9(1), 65- 90. Recuperado de https://revistas.ufrj.br/index.php/dilemas/article/view/7673, pg.68.

 

SANTOS, Elizangela Silva, Dilemas da Transição em Miguel de Unamuno e José Enrique Rodó, DADOS, Rio de Janeiro, vol.62(2):e20160045, 2019. http://dx.doi.org/10.1590/001152582019183.

 

DE SOUSA SANTOS, Boaventura, Construindo as Epistemologias do Sul: Antologia Esencial. Volume I: Para um pensamento alternativo de alternativas / Boaventura de Sousa Santos; compilado por Maria Paula Meneses... [et al.]. - 1a ed. - Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO, 2018. V. 1, 688 p.; 20 x 20 cm - (Antologías del Pensamiento Social Latinoamericano y Caribeño / Gentili, Pablo)

 

Anuário Brasileiro de Segurança Pública / Fórum Brasileiro de Segurança Pública. – 1 (2006)- . – São Paulo: FBSP, 2023.

 



[1] O termo “civilização cristã ocidental” aparece em escritos políticos e filosóficos a partir da elaboração do intelectual espanhol Miguel de Unamuno (1864 - 1936).

[2] O Direito, Rio de Janeiro, 19(54): 160, jan.,-abr. 1891. Disponível em:< https://pt.wikipedia.org/wiki/Queima_dos_arquivos_da_escravid%C3%A3o_no_Brasil#/media/Ficheiro:Documento_da_queima_dos_arquivos_da_escravid%C3%A3o_no_Brasil_em_1890.png> Acesso em: 13 mar 2024.

[3] Dados do ano de 2023 constantes no 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, disponível em:< https://apidspace.universilab.com.br/server/api/core/bitstreams/c0c6abca-36ce-4469-aff1-6cdba95bf197/content> Acesso em 13 de mar 2024.

[4] BROCCO, P. Vida nua e forma-de-vida em Giorgio Agamben e Karl Marx: Violência e emancipação entre capitalismo e estado de exceção. In: Dilemas - Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, 9(1), 65- 90. Recuperado de https://revistas.ufrj.br/index.php/dilemas/article/view/7673, pg.68

[5] AGAMBEN, Giorgio. (2000), Homo sacer: O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte, Editora UFMG, pg.91.

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