quinta-feira, 2 de junho de 2022

É PRECISO DAR NOME AS COISAS

 

É PRECISO DAR NOME AS COISAS, por José Pessôa do Rêgo Lobo[1]




 

Entre nós, brasileiros ou não, que vivem e morrem nesse país, é comum ouvir e ler certas frases, verdadeiros jargões publicitários, que afirmam e reafirmam uma narrativa, um conjunto de ideias, valores, crenças e hábitos que ao serem repetidas, diuturnamente, acabam por serem, ao fim das contas, reproduzidas na realidade.

O Brasil é e foi, e continuará sendo, como nas estórias infantis nas quais cada criancinha pensa e sente quando ouve um “Era uma vez...”, a alegria ou o terror de um eterno agora que nunca se materializa. É então que nos perpetuamos, sempre na voz passiva como “o país do futuro”; “um país de gente cordial e hospitaleira”; “uma nação soberana gigante por natureza”; “o país do esquecimento”; do “ame-o ou deixe-o”; “o Brasil não é para amadores!”, dizem... todas, proferidas depois da célebre “Independência ou morte”[2], essa sim, acertou na mosca.

Contudo, o ato de esquecer, que no âmbito psicanalítico costuma ser entendido como fenômeno psíquico no qual o sujeito para sua autodefesa ou negação, defesa contra um mundo opressor e/ou sentimentos e impulsos inadmissíveis ao sol da verdade[3], dessa tão esmurrada e contorcida e relativizada palavra, quando passa para o campo histórico e do Estado, já não pode mais omitir-se de seus verdadeiros fins, ou pode?!

Ao longo de séculos o Estado brasileiro vem promovendo uma deliberada ocultação de fatos históricos e seus sujeitos concretos, suas narrativas, seus legados e anseios, seus nomes e suas, digo, nossas, ancestralidades. Em um permanente silenciamento que transpassa toda a diáspora negra, desde o colonialismo ao epistemicídio[4]. Seja quando Ruy Barbosa, então Ministro da Fazenda, em 13 de maio de 1891 determinou a queima[5] de todos os apontamentos ligados aos homens, mulheres e crianças trazidos na condição de escravos de África, incluindo registros de ancestralidade, matrículas de importação e tributos oficiais, seja na forma do genocídio urbano, com mais de 40 mil mortes violentas[6] por ano, década após década, seja com o encarceramento em massa de jovens negros e negras, periféricos, que se manifesta cruamente fetichizado na cultura do “bandido bom é bandido morto”, contato que não seja um industrial, político ou intelectual branco, é óbvio!

Desde de que embarcados, suas línguas, linguagens e nomes também deveriam ser esquecidos, seus nomes originários não mais poderiam ser ditos. Mas não seremos silenciados, e, como nos ensina a Drª. Sueli Carneiro[7], esse silenciamento, esse “projeto de destruição e domínio” construtores de epistemicídio sistemáticos, “não se realiza cabalmente graças ao não esquecimento e ao rememoramento, nas experiências históricas que se configuram em resistência, produzindo massa crítica sobre diversos temas” e que sempre nos chama a atualizar esta “democracia”, expandido seus limites da atual barbárie para um paradigma civilizatório plural-não-opressor. De modo semelhante, tal qual nossos irmãos ultramarinos, milhões de nossas irmãs e irmãos “indígenas”, que até hoje vivem uma infinda diáspora em terra própria, também tiveram seus nomes, línguas e tradições renomeados. Agora sei bem que índios não são[8], então quem somos todos nós?!

Ainda ontem, enquanto lutava por sobrevivência e necessidade de sonhar, entre livros, diálogos, risos e protestos, em minha lida diária de acadêmico de Letras Espanhol na UFPA, foi assassinado pelo Estado brasileiro, através de agentes da polícia rodoviária federal, em uma câmara de gás improvisada, meu irmão sergipano Genivaldo de Jesus Santos, outro homem negro como tantos, “ou quase pretos ou quase brancos”[9] cuja história será em breve também esquecida, como sempre é por aqui, donde as musas também não podem cantar[10] e nem contar as memórias de cárceres manicomiais, outrora chamados hospitais, mas não só entre nós, pois onde quer que a mão branca colonizadora tenha impôs suas mazelas o mesmo ocorre, como outrora na mídia global e a agora já esquecido, caso estadunidense de G. Floyd. E as vidas negras ainda importam?!

Também devemos esquecer a frase “o problema não é a autoridade maior. É o guarda da esquina”?! Dita pelo “homem de bem e patriota” Pedro Aleixo, em 13 de setembro de 1968, no ato de decretação do AI-5[11], que também serviu e serve para nos contar uma história, aquela do Outro, onde o presidente e seus asseclas não têm culpa e nem responsabilidade, e, portanto, podem ser esquecidos. Entretanto tais “guardas da esquina” são a ponta de lança, o cassetete, a coronhada, o coturno e a bala do “Estado democrático de Direito” e seus homens de confiança, os agentes de segurança pública, seja pelo racismo estrutural[12] e/ou pelo abandono mental desses sujeitos, que são muitas das vezes deformados pelas práticas, usos e relações com grupos milicianos ou político-narcotraficantes próprios do momento histórico concreto no qual estão inseridos, mutilam a humanidade de todos, fazendo cenas de tortura, abuso de autoridade ou excesso de força serem festejados diariamente em telejornais e “grupos de Whatsapp das famílias conservadoras e patriotas” de todo país.

Mas é preciso dizer o nome das coisas, e é imprescindível não esquecer e contar desde nossas perspectivas, porque não podemos continuar sendo um “país sem memória”, “um povo sem alma” e o negro, o indígena de nós asfixiado naquele caveirão em Sergipe, nas missões jesuíticas ou nos tumbeiros ibéricos não podem continuar nos definindo, pois, como muito bem negritou o pesquisador e advogado guineense, Dr. Nathanael Fona, em evento recente em memória do dia internacional da África[13] (25 de maio), temos sim uma história multimilenar e o silencio dos esquecidos, daqueles que se calam ou assistem bárbaros homicídios – ao vivo ou pelos noticiários – como se fossem estórias sobre Outros, permitirá a perpetuação de uma população mansa, domesticada, controlada, esquecida de si, ou como diria Karl Marx, alienada[14],  e em “uma nação que desconhece o seu passado, não compreende o presente tampouco existe a possibilidade de projeção de um futuro próspero”, relegando a próxima geração os mesmos suplícios vividos por nossos antepassados e por nós mesmos.       

O poeta e raper de Brasília, G.O.G, outro Genivaldo, corporificava tudo isso ao bradar na canção “Carta à Mãe África”, do álbum “Aviso às gerações” (2006) “A carne mais barata do mercado é a negra, a carne mais marcada pelo Estado é a negra”.

É preciso dar nome as coisas!

O nazifascismo já não é micro, está disseminado em nossa sociedade, a mentalidade e práticas eugenistas que deixariam Mengele[15] orgulhoso ceifaram mais de meio milhão de vidas durante a pandemia, vidas negras periféricas em mais de 80%[16] dos casos,  seu líder público atual, por menos intelectual que seja, Jair Bolsonaro (ainda presidente), não está só, tampouco nu e a concentração de renda, assim como o corte étnico-pecuniários de seus apoiadores exibem indubitavelmente a continuidade simbiótica e macabra dessa parceira. O Capitalismo continua gerando fome e escassez entre nós, envenenando mananciais e plantações, estuprando nossas crianças, assassinando homossexuais, massacrando nossas almas por muitos níveis de epistemicídio e pelo racismo estrutural pela negação da centralidade de uma educação pública gratuita, socialmente referenciada e de qualidade. Por isso também é preciso dizer, sem esquecer o nome das coisas, quem somos e que nação queremos ter, que futuro deixaremos para nossa descendência.   

 

Belém, 25 de maio de 2022.



[1] José Pessôa do Rêgo Lobo, graduando em Letras Espanhol (UFPA) e em História (UNIP), colaborador do projeto de pesquisa “A utilização dos recursos didático-tecnológicos na aprendizagem de espanhol na Amazônia: a voz dos alunos do Curso de Letras-Espanhol da Universidade Federal do Pará” coordenado pelo Dr. Carlos Cernadas Carrera e do Projeto de Ensino, Pesquisa e Extensão “Guamá Bilíngue”, http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/40555, coordenado pela Drª. Rita de Cássia Paiva. Apoiador da Chapa 2 “Todas as Falas”, para o ILC/UFPA (2022).

 [2] Título da pintura de Pedro Américo - e não uma frase dita por quem quer que seja - concluída em 1888, de 415 cm x 7660 cm, retratando um evento que nunca ocorrera, o da heroica proclamação da República, bradada do alto de um cavalo branco, às margens do Ipiranga, por Dom Pedro II.

[3]  "a verdade, nunca se pode dizê-la, a não ser pela metade" (LACAN, 1992, p.34), posto que ela "[se] revela complexa por essência, humilde em seus préstimos e estranha à realidade, (...) aparentada com a morte e, pensando bem, basicamente desumana" (LACAN, 1998, p. 437).

[4] O termo “epistemicídio” foi cunhado primeiramente por Boa Ventura dos Santos, que o define como uma estratégia ainda mais cruel que os genocídios coloniais, porque “ocorreu sempre que se pretendeu subalternizar, subordinar, marginalizar práticas ou grupos sociais que possam marginalizar a expansão capitalista”. (Santos, 1995, p. 328). E pode ser entendido de modo genérico como o esforço de silenciamento e/ou genocídio das ideias, dos saberes dos povos lançados à condição de Outro, dos periféricos, marginais, dos pretos, cujas existências por si mesma “ofende” o stabelichment.

[5] Barbosa, Francisco (1988). Rui Barbosa e a queima dos arquivos (PDF). Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa.

 [6] Fórum Brasileiro de Segurança Pública 2019.

[7] (Carneiro, 2005), além de trechos extraídos da live do canal “Pensar Africanamente”, com título “Pensar Africanamente com Sueli Carneiro”, transmitido ao vivo em 25 de maio de 2022.

[8] Referência ao poema “Índio eu não sou” da pesquisadora e poetisa Márcia Kambeba.

[9] Extraído da canção “Haiti”, de Caetano e Gilberto Gil, lançada em 1993, álbum “Tropicária 2”.

[10] Mnemosyne canta "tudo o que foi, tudo o que é, tudo o que será"(3) (HESÍODO, 1927, p.15).

[11] SERBIN, Kenneth P. Diálogos na sombra: bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

[12] ALMEIDA, S. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019. 264 p. ISBN 978-85-98349-75-6.

[13] Realizado pela Associação de Estudantes Estrangeiros da UFPA, dirigida por Enock Akodedjro (Benin). Tendo como palestrantes os doutores Israël Sèwanow Hounsou (Benin), Sakanatou habi Yorouba (Benin) e Anacleto Anibal Xavier Domingos (Angola) e as graduandas Abigail Yawo Atsupui Duho (Gana), Renata Ramos (são Tomé e Príncipe).

[14] “A alienação da humanidade, no sentido fundamental do termo, significa perda de controle: sua corporificação numa força externa que controla os indivíduos com um poder hostil e potencialmente destruidor”. Teoria da Alienação em Marx. (Mésazáros, 1927).

[15] https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/josef-mengele.

[16] https://br.noticias.yahoo.com/bolsonaro-e-favorito-entre-mais-ricos-aponta-datafolha-154525148.html?guccounter=1&guce_referrer=aHR0cHM6Ly93d3cuZ29vZ2xlLmNvbS8&guce_referrer_sig=AQAAAIVeWfsvl3EECQSYUumVtN1Xx1MCAWCUgtBEfnrB6C_R9Zn-Hdqp0xBeC51a2keW_PI4O1ZQA0SCaIWh8lJ908eSz_J1i9kGZTHZEOR3Y6Io41NpXyBZYRG9jwG9p6TmH8pCKGUd0dHCVG6yHvuXvtGv6nz944tg7vU5IEHCawqF.

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