É PRECISO DAR NOME AS COISAS, por José Pessôa do Rêgo Lobo[1]
Entre nós, brasileiros ou não,
que vivem e morrem nesse país, é comum ouvir e ler certas frases, verdadeiros
jargões publicitários, que afirmam e reafirmam uma narrativa, um conjunto de ideias, valores, crenças e hábitos que ao serem repetidas, diuturnamente,
acabam por serem, ao fim das contas, reproduzidas na realidade.
O Brasil é e foi, e continuará
sendo, como nas estórias infantis nas quais cada criancinha pensa e sente
quando ouve um “Era uma vez...”, a alegria ou o terror de um eterno agora que
nunca se materializa. É então que nos perpetuamos, sempre na voz passiva como “o
país do futuro”; “um país de gente cordial e hospitaleira”; “uma nação soberana
gigante por natureza”; “o país do esquecimento”; do “ame-o ou deixe-o”; “o
Brasil não é para amadores!”, dizem... todas, proferidas depois da célebre
“Independência ou morte”[2], essa sim, acertou na
mosca.
Contudo, o ato de esquecer, que
no âmbito psicanalítico costuma ser entendido como fenômeno psíquico no qual o
sujeito para sua autodefesa ou negação, defesa contra um mundo opressor e/ou
sentimentos e impulsos inadmissíveis ao sol da verdade[3], dessa tão esmurrada e
contorcida e relativizada palavra, quando passa para o campo histórico e do
Estado, já não pode mais omitir-se de seus verdadeiros fins, ou pode?!
Ao longo de séculos o Estado
brasileiro vem promovendo uma deliberada ocultação de fatos históricos e seus
sujeitos concretos, suas narrativas, seus legados e anseios, seus nomes e suas,
digo, nossas, ancestralidades. Em um permanente silenciamento que transpassa
toda a diáspora negra, desde o colonialismo ao epistemicídio[4]. Seja quando Ruy Barbosa,
então Ministro da Fazenda, em 13 de maio de 1891 determinou a queima[5] de todos os apontamentos
ligados aos homens, mulheres e crianças trazidos na condição de escravos de
África, incluindo registros de ancestralidade, matrículas de importação e
tributos oficiais, seja na forma do genocídio urbano, com mais de 40 mil mortes
violentas[6] por ano, década após
década, seja com o encarceramento em massa de jovens negros e negras,
periféricos, que se manifesta cruamente fetichizado na cultura do “bandido bom
é bandido morto”, contato que não seja um industrial, político ou intelectual
branco, é óbvio!
Desde de que embarcados, suas
línguas, linguagens e nomes também deveriam ser esquecidos, seus nomes
originários não mais poderiam ser ditos. Mas não seremos silenciados, e, como
nos ensina a Drª. Sueli Carneiro[7], esse silenciamento, esse “projeto
de destruição e domínio” construtores de epistemicídio sistemáticos, “não se
realiza cabalmente graças ao não esquecimento e ao rememoramento, nas
experiências históricas que se configuram em resistência, produzindo massa
crítica sobre diversos temas” e que sempre nos chama a atualizar esta “democracia”,
expandido seus limites da atual barbárie para um paradigma civilizatório plural-não-opressor.
De modo semelhante, tal qual nossos irmãos ultramarinos, milhões de nossas irmãs
e irmãos “indígenas”, que até hoje vivem uma infinda diáspora em terra própria,
também tiveram seus nomes, línguas e tradições renomeados. Agora sei bem que
índios não são[8],
então quem somos todos nós?!
Ainda ontem, enquanto lutava
por sobrevivência e necessidade de sonhar, entre livros, diálogos, risos e
protestos, em minha lida diária de acadêmico de Letras Espanhol na UFPA, foi
assassinado pelo Estado brasileiro, através de agentes da polícia rodoviária
federal, em uma câmara de gás improvisada, meu irmão sergipano Genivaldo de
Jesus Santos, outro homem negro como tantos, “ou quase pretos ou quase brancos”[9] cuja história será em
breve também esquecida, como sempre é por aqui, donde as musas também não podem
cantar[10] e nem contar as memórias
de cárceres manicomiais, outrora chamados hospitais, mas não só entre nós, pois
onde quer que a mão branca colonizadora tenha impôs suas mazelas o mesmo
ocorre, como outrora na mídia global e a agora já esquecido, caso estadunidense
de G. Floyd. E as vidas negras ainda importam?!
Também devemos esquecer a frase
“o problema não é a autoridade maior. É o guarda da esquina”?! Dita pelo “homem
de bem e patriota” Pedro Aleixo, em 13 de setembro de 1968, no ato de
decretação do AI-5[11], que também serviu e
serve para nos contar uma história, aquela do Outro, onde o presidente e seus
asseclas não têm culpa e nem responsabilidade, e, portanto, podem ser
esquecidos. Entretanto tais “guardas da esquina” são a ponta de lança, o cassetete,
a coronhada, o coturno e a bala do “Estado democrático de Direito” e seus
homens de confiança, os agentes de segurança pública, seja pelo racismo
estrutural[12]
e/ou pelo abandono mental desses sujeitos, que são muitas das vezes deformados
pelas práticas, usos e relações com grupos milicianos ou político-narcotraficantes
próprios do momento histórico concreto no qual estão inseridos, mutilam a humanidade
de todos, fazendo cenas de tortura, abuso de autoridade ou excesso de força
serem festejados diariamente em telejornais e “grupos de Whatsapp das famílias
conservadoras e patriotas” de todo país.
Mas é preciso dizer o nome das
coisas, e é imprescindível não esquecer e contar desde nossas perspectivas,
porque não podemos continuar sendo um “país sem memória”, “um povo sem alma” e
o negro, o indígena de nós asfixiado naquele caveirão em Sergipe, nas missões
jesuíticas ou nos tumbeiros ibéricos não podem continuar nos definindo, pois,
como muito bem negritou o pesquisador e advogado guineense, Dr. Nathanael Fona,
em evento recente em memória do dia internacional da África[13] (25 de maio), temos sim
uma história multimilenar e o silencio dos esquecidos, daqueles que se calam ou
assistem bárbaros homicídios – ao vivo ou pelos noticiários – como se fossem
estórias sobre Outros, permitirá a perpetuação de uma população mansa,
domesticada, controlada, esquecida de si, ou como diria Karl Marx, alienada[14], e em “uma nação que desconhece o seu passado,
não compreende o presente tampouco existe a possibilidade de projeção de um
futuro próspero”, relegando a próxima geração os mesmos suplícios vividos por
nossos antepassados e por nós mesmos.
O poeta e raper de Brasília, G.O.G, outro Genivaldo,
corporificava tudo isso ao bradar na canção “Carta à Mãe África”, do álbum
“Aviso às gerações” (2006) “A carne mais barata do mercado é a negra, a carne
mais marcada pelo Estado é a negra”.
É preciso dar nome as coisas!
O nazifascismo
já não é micro, está disseminado em nossa sociedade, a mentalidade e práticas
eugenistas que deixariam Mengele[15] orgulhoso ceifaram mais
de meio milhão de vidas durante a pandemia, vidas negras periféricas em mais de
80%[16] dos casos, seu líder público atual, por menos intelectual
que seja, Jair Bolsonaro (ainda presidente), não está só, tampouco nu e a
concentração de renda, assim como o corte étnico-pecuniários de seus apoiadores
exibem indubitavelmente a continuidade simbiótica e macabra dessa parceira. O
Capitalismo continua gerando fome e escassez entre nós, envenenando mananciais
e plantações, estuprando nossas crianças, assassinando homossexuais, massacrando
nossas almas por muitos níveis de epistemicídio e pelo racismo estrutural pela
negação da centralidade de uma educação pública gratuita, socialmente
referenciada e de qualidade. Por isso também é preciso dizer, sem esquecer o
nome das coisas, quem somos e que nação queremos ter, que futuro deixaremos
para nossa descendência.
Belém,
25 de maio de 2022.
[1] José
Pessôa do Rêgo Lobo, graduando em Letras Espanhol (UFPA) e em História
(UNIP), colaborador do projeto de pesquisa “A
utilização dos recursos didático-tecnológicos na aprendizagem de espanhol na
Amazônia: a voz dos alunos do Curso de Letras-Espanhol da Universidade Federal
do Pará” coordenado pelo Dr. Carlos Cernadas Carrera e do Projeto de Ensino,
Pesquisa e Extensão “Guamá Bilíngue”,
http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/40555, coordenado pela Drª. Rita de Cássia
Paiva. Apoiador da Chapa 2 “Todas as Falas”, para o ILC/UFPA (2022).
[2] Título da pintura de Pedro Américo - e não uma frase dita por quem quer que seja - concluída em 1888, de 415 cm x 7660 cm, retratando um evento que nunca ocorrera, o da heroica proclamação da República, bradada do alto de um cavalo branco, às margens do Ipiranga, por Dom Pedro II.
[3] "a verdade, nunca se pode dizê-la, a não ser
pela metade" (LACAN, 1992, p.34), posto que ela "[se] revela complexa
por essência, humilde em seus préstimos e estranha à realidade, (...) aparentada
com a morte e, pensando bem, basicamente desumana" (LACAN, 1998,
p. 437).
[4] O termo “epistemicídio” foi cunhado
primeiramente por Boa Ventura dos Santos, que o define como uma estratégia
ainda mais cruel que os genocídios coloniais, porque “ocorreu sempre que se
pretendeu subalternizar, subordinar, marginalizar práticas ou grupos sociais
que possam marginalizar a expansão capitalista”. (Santos, 1995, p. 328). E pode
ser entendido de modo genérico como o esforço de silenciamento e/ou genocídio
das ideias, dos saberes dos povos lançados à condição de Outro, dos periféricos,
marginais, dos pretos, cujas existências por si mesma “ofende” o stabelichment.
[5] Barbosa, Francisco
(1988). Rui
Barbosa e a queima dos arquivos (PDF). Rio de
Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa.
[7] (Carneiro, 2005), além de trechos
extraídos da live do canal “Pensar Africanamente”, com título “Pensar Africanamente
com Sueli Carneiro”, transmitido ao vivo em 25 de maio de 2022.
[8] Referência ao poema “Índio eu não sou”
da pesquisadora e poetisa Márcia Kambeba.
[9] Extraído da canção “Haiti”, de Caetano
e Gilberto Gil, lançada em 1993, álbum “Tropicária 2”.
[11] SERBIN,
Kenneth P. Diálogos na sombra: bispos e militares, tortura e justiça social na
ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
[12] ALMEIDA,
S. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019. 264 p. ISBN
978-85-98349-75-6.
[13]
Realizado pela Associação de Estudantes Estrangeiros da UFPA, dirigida por Enock
Akodedjro (Benin). Tendo como palestrantes os doutores Israël Sèwanow Hounsou
(Benin), Sakanatou habi Yorouba (Benin) e Anacleto Anibal Xavier Domingos
(Angola) e as graduandas Abigail Yawo Atsupui Duho (Gana), Renata Ramos (são
Tomé e Príncipe).
[14] “A alienação da humanidade, no sentido
fundamental do termo, significa perda de controle: sua corporificação numa
força externa que controla os indivíduos com um poder hostil e potencialmente
destruidor”. Teoria da Alienação em Marx. (Mésazáros, 1927).
[15] https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/josef-mengele.
[16] https://br.noticias.yahoo.com/bolsonaro-e-favorito-entre-mais-ricos-aponta-datafolha-154525148.html?guccounter=1&guce_referrer=aHR0cHM6Ly93d3cuZ29vZ2xlLmNvbS8&guce_referrer_sig=AQAAAIVeWfsvl3EECQSYUumVtN1Xx1MCAWCUgtBEfnrB6C_R9Zn-Hdqp0xBeC51a2keW_PI4O1ZQA0SCaIWh8lJ908eSz_J1i9kGZTHZEOR3Y6Io41NpXyBZYRG9jwG9p6TmH8pCKGUd0dHCVG6yHvuXvtGv6nz944tg7vU5IEHCawqF.
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